sábado, 30 de março de 2013

Ezekiel e a Tenda de Estrelas - PARTE DOIS


Parte Dois
“Um punhal vivo, um sacrifício forjado, os irresistíveis bolinhos de coco da Vovó Ilusão, um detetive aposentado, lendas e desejos, mortes e vidas a se cumprir.”

- É inaceitável que se faça isto a uma velha como eu! Eu exijo explicações sensatas agora mesmo, você só pode estar cometendo um erro rapaz!

 Gritou roucamente a senhora de cinza batendo com o guarda-chuva no balcão do caixa do banco, enquanto o funcionário assustado e envergonhado explicava repetidas vezes o que acontecera;

O rapaz dizia;

 - Dona Dhalia, por favor não vamos piorar as coisas, todos os pertences no cofre  foram retirados de lá pelo senhor seu marido a três semanas atrás, temos como provar nas fitas de segurança do banco!

 E ela ignorava o rapaz do banco como se não tivesse ouvido nada

As pessoas já gritavam impacientes na fila

- Alguém tira essa senhora da fila por favor!
- Manda ela pra sala do gerente!
-Ô tia! Já deu! Vaza!
- Cadê o responsável por esta senhora!?

Quando ouviu isto, Dona Dhalia se encheu de fúria e gritou como poucas velinhas poderiam gritar neste mundo;

-RESPONSÁVEL? RESPONSÁVEL POR MIM!? RESPONSÁVEL PELA PIOR MALDIÇÃO QUE VOCÊ PODERIA TER TOPADO HOJE SUA INFELIZ!? O QUE ME DIRIA VOCÊ AQUI SACANDO DINHEIRO DA APOSENTADORIA DA SUA MÃE PARA JOGAR NO BINGO!?

Então alguém intervém;

-Já chega Dona Dhalia! A senhora vai me acompanhar até meu escritório com calma e sem escândalos desnecessários!

Era o gerente do banco entrando entre Dona Dhalia e a assustada e confusa cliente que mantinha um suspeito e embaraçoso silêncio após as acusações daquela velha estranha.

O gerente olha inconformado com a atitude exagerada de Dona Dhalia e diz;

- A senhora poderia simplesmente ter pedido para me chamar desde o começo ao invés de chamar tanto a atenção como chamou Dona Dhalia, a senhora conhece o caminho da minha sala.

E os dois seguiram para o andar de cima enquanto os clientes e funcionários se entreolhavam espantados fazendo comentários cômicos sobre a situação.


Ao entrar na sala Dona Dhalia foi direto ao filtro d’água, tremendo e amassando seu copo tentando permanecer calada enquanto o gerente se ajeitava em sua cadeira e fechava seu notebook.

- Pois bem Dona Dhalia, nós então já sabemos que o punhal e as pedras foram roubados não é mesmo?

Dona Dhalia dá um salto e derruba água por todo lado

- Sabemos? COMO!? Então foram roubados mesmo? Levaram mesmo!? Mas só eu ou ele podia entrar no cofre, como podem, mas o menino...

O gerente interrompe Dona Dhalia que de tão pasma não consegue completar a frase

- O rapaz do caixa sonhou que viu uma fita em que você e seu marido entravam no cofre, foi tudo bem planejado Dona Dhalia, e isto não cabe a mim resolver, e sim a você e aos dos outros planos, nosso chefe que como a senhora bem sabe não pode ser encontrado aqui, apenas  pediu que eu lhe transmitisse certas coordenadas.

E Dona Dhalia assustada, gaguejando dúvidas arrasta-se pela parede

- Eles, eles enganaram agente desse jeito? Eles levaram nossa fortaleza e vocês falharam sem uma morte sequer de nenhum dos dois lados ou qualquer outra atrocidade desnecessária típica de vocês? Eles levaram nossos filhos e nossas mães, levaram dois terços da alma de Gaia, levaram Demônios e Anjos que dependem do nosso Amor para estar bem aonde estão, você não pode me falar uma coisa dessas numa frieza tão desprezível seu resto de má magia queimada! Por que tenho que acreditar que vocês não tem nada a ver com isso seus merdas engravatados!? CADÊ A NOSSA FORTALEZA SEUS RESTOS DE MÁ SORTE!?

E Dona Dhalia agora parece ter muito mais dentes do que tinha antes, e olhos muito maiores e amarelos,  vai volitando da parede aonde está até o pescoço do gerente em um segundo;

Da boca e dos olhos arregalados do gerente saem fumaças negras e densas que formam seis cabeças que falam ao mesmo tempo;

- Nós estamos fora disso Dhalia, largue o pescoço do corpo e vá ao plano das tendas, nós estamos em assuntos pequenos agora, o nosso senhor nos ordenou que permanecêssemos nesta posição e assim ficaremos até seu próximo desejo, Ele nos ordenou que lhe instruíssemos em direção ao plano das Tendas e que buscasse auxílio das Lendas nos planos intermediários da esfera. Apenas isso temos a lhe dizer Senhora da Ilusão.

Dhalia solta o pescoço do “gerente” que reconstitui seu rosto rapidamente enquanto ela furiosa caminha em direção a porta pisando duro e dizendo suas  verdades a ele;

- Vocês apenas por ser isto que resta já são um assunto pequeno Legião! Estão destinados a cumprir desejos pequenos pro resto dessa existência condenada, são meros mensageiros dele. Sei bem aonde encontrar meus auxílios, e pode ter certeza que estarei nos intermediários e bem atenta aos sinais de vocês nessas história!

E ela sai batendo a porta fazendo com que dois funcionários ficassem pasmos com a força e raiva de uma velinha

- Pois que assim seja Dona Dhalia da Ilusão.

Diz o gerente sem expressão alguma no rosto ajeitando sua gravata.




Enquanto isso, na casa do Silas...

São Paulo, sete e meia da manhã;

Acordei cedo este sábado.

É claro que imaginei; “Bom, agora que já acordei em casa e sei que ainda é sábado vou sair e passar o dia inventando atividades pra não me meter mais no assunto da minha irmã”.

Mas  é claro que eu só imaginei.

-  Como ela pôde ter confiado num velhote e não foi por conta própria checar o escritório do próprio namorado pra pegar seus pertences pessoalmente, aquele não era o lugar de um crime.
Porquê ela foi tão idiota Cometa?

E meu gato como de costume dispara a miar além do normal após eu terminar uma sentença dirigida a ele.  Mas desta vez foi diferente.

É certo pra mim que de alguma forma ele conversa;
Ele costuma ser um gato estranho diariamente e já não me surpreendo além da conta com ele, foi um gato que apareceu na porta da minha casa quando estava trabalhando com jornalismo em Corumbá, apareceu todo pintado parecendo um palhaço Siamês bizarro. Como podia? Um gato todo colorido? Mas quando dei banho nele vi que era tinta de um enfeite que algum ex-dono de mau gosto pintou ou alguma criança maldosa para rir do bichinho.

Mas aquele dia ele miou, e correu pela casa toda, pendurou-se por tudo que via pela frente e finalmente derrubou minha estante de livros.

- Mas que droga de gato! O que acontece com você seu gato maluco!?

E então avisto entre os livros espalhados um pequeno livrinho com uma capa dura toda cor de vinho com uma cordinha amarrada em volta.

De onde vinha aquilo?

Não havia nada que fazia eu lembrar de onde vinha aquele livrinho que por algum motivo eu ainda não havia me aproximado para pegar. Apenas tentava lembrar por instinto de onde vinha  antes de  abrir e ver do que se tratava.

Então olho pela a janela do quarto e vejo um gavião voando em direção a mim segurando um pequeno roedor morto.
Mas num movimento e numa velocidade impossível ele desviou-se para o alto e sumiu antes de atravessar a janela, e na mesma hora eu lembrei de onde o livrinho viera!

- Meu Deus Cometinha! Esse livrinho foi o namorado da minha irmã que deixou comigo, naquele dia em que teve uma festinha na casa da mamãe para introduzir ele na família, antes de ir embora ele me entregou um livrinho após termos uma conversa sobre lendas que eu havia noticiado quando trabalhei no jornal em Corumbá, estava falando pra ele sobre o livro que eu estava escrevendo sobre estas lendas e ele me deu este livrinho dizendo que eu me interessaria por ele no futuro!

E num pulo agarrei o livrinho, louco  pra ler tudo que tinha nele, e na primeira página estava escrito:

“Instinto também é mágica, siga seu instinto e a mágica se revelará, você conhecerá suas lendas pessoalmente e dominará a trilha entre os mundos.
Cordialmente
Ezekiel Pereira da Luz ”

Nas próximas páginas havia o conto sobre o Saci Pererê, e no fim do livro haviam doze papéis dobrados com algumas ilustrações que pareciam ser feitas pelo próprio Ezekiel , eram algumas casinhas estranhas entre flores que cobriam o rosto do Saci que parecia se esconder entre elas. Em todos os desenhos haviam uma árvore enorme com frutinhas amarelas no centro de tudo.

Puxa, mas que decepção.

Do que aquilo me servia agora? Aquilo não indicava nada sobre nada que eu precisasse agora, claro que depositei esperança demais nisso já que estava tão envolvido na ideia do sumiço dele. E além do mais o livro sobre as lendas já estava escrito, já era assunto antigo pra mim.

Resolvi guardar os desenhos na minha mochila e saí para encontrar uns amigos meus que sempre estavam na praça perto de casa.

- Tchau cometinha, cuida aí da bagunça que quando eu voltar eu tomo coragem de arrumar.

E saí de casa desejando inutilmente que o cometinha pudesse arrumar a zona que fez.



No caminho para a praça pensei na história do gavião, claro que foi muito estranho, até mesmo porque aonde moro agora em São Paulo não se vê gavião dando rasante por aí tão facilmente, eu mesmo costumo ver os gaviões daqui de longe próximo as serras ou confundindo-se com os urubus perto de parques ou lixões.  E como ele subiu rápido daquele jeito?

Então um mendigo veio em minha direção fechando minha passagem

- Ei moço! Tem um realzinho aí pra fazer meu dia?
- Nem cinquenta centavos tio! Nessa mochila aqui só tem papel e caneta.
- Então eu tenho uma palavrinha pra você! Uma palavra de parceiro! Espera eu falar um pouquinho!

Desde pequeno tenho uma estranha afinidade com mendigos, eles vêm até mim com frequência e geralmente querem conversar comigo. Então parei para ouvi-lo como costumo fazer mesmo que eu me arrependa na maioria das vezes;

- Sabe rapaz, o tempo morre para os que nascem preparados e sufoca os que nascem condenados. As coisas simples não tem mais graça para os condenados porque nasceram massacrados pelo tempo, eles carregam a cicatriz da escravidão dos demônios e pagam hoje por sua submissão medrosa! Mas o Criador é generoso garoto e nasceram em todos os tempos aqueles que não morrem com o tempo. Ele tem um plano especial pra sua vida garoto. Muito especial.

E eu respondi como qualquer um que não dá ouvidos de verdade a um mendigo

- Valeu meu querido, bom dia pro senhor! Fica com Deus também.

E virei para seguir meu caminho enquanto ele ainda falava

Então ele soltou uma frase com toda a força de mendigo bêbado que ele podia ter naquele momento;

-  Deus? Qual deles!? Por que tem medo de outros Deuses menino? Por que tem medo de mendigo!?

Aí eu me virei e disse em alto e bom som também

- Eu nunca deixei de conversar ou ser educado com um mendigo nesta minha vida! Tanto que pensei nisso antes de parar pra ouvir sei lá o que que você tinha pra me falar!

- Pois é, e também pensou que sempre se arrependia ao fazer isso, e também já esqueceu sobre Deuses só pra justificar sua máscara de bom garoto, quem é você menino? Será que você realmente tá pronto pra vida que eles te ofereceram?

Acho que alguns mais esquentados no meu lugar teriam arrebentado ele na porrada, outros teriam virado as costas com aquilo na cabeça e teriam terminado seu dia lendo ou assistindo algo pra esquecer, a maioria ficaria estarrecida por ele ter “lido” minha mente ou muitos já teriam esquecido aquilo tudo na primeira frase e já estariam comendo um cachorro quente, eu no entanto fiz a pergunta mais absurda e inútil que qualquer outro jornalista do mundo faria;

- Eles? Quem são eles? De quem o senhor está falando?

Então ele me disse calmo com a face serena, completamente diferente de como estava antes, não tinha mais cara de mendigo;

- Obrigado

E foi embora em direção a avenida

- Hei! Seu maluco volta aqui!

Quando me vi gritando para o mendigo voltar, me dei conta de que eu precisava parar de me meter no assunto da minha irmã pra valer, pra mim tudo aquilo ia me levar ao namorado dela de alguma forma. Era muito difícil pra minha cabeça curiosa desistir disso.

Então voltei para meu caminho e continuei sentido a praça. Não tinha mais porque ficar fazendo conexões com essa história, até mesmo por que minha irmã disse que Ezekiel andava escrevendo essas coisas recentemente, ele me deu aquele livrinho do saci logo no início do namoro deles, já faz pouco mais de um ano, eu só estou impressionado de encontrar algo relacionado a ele justamente agora que essa história toda tá rolando.
E aí minha cabeça quer conectar tudo que é pra criar mais emoção pra essa minha vida cinza cheia de carros e praças.
Cheia de mendigos que me mandam ficar com Deus e depois gritam feito loucos.
Só isso.



Enquanto isso, na delegacia...
No sétimo distrito policial do bairro do Butantã na capital de São Paulo, o  delegado Ivanildo Casagrande decide problemas com seus funcionários como costuma fazer todas as segundas feiras de manhã;

- Saco! Saco saco saco saco! Seu papo é um saco de velho senhor Humberto! Não tenho mais saco pra esse seu papo de policial aposentado, bêbado chato! O senhor é um saco! Um saco bem grande de velho chato! São quarenta e cinco anos senhor Humberto! Não tem mais condições pelo amor de Deus vai pra casa! Vai dormir! Vai babar até morrer no sofá! Não quero mais seu monte de papo chato! São milhares de pessoas sumindo por dia nessa cidade maldita e eu não tenho o mínimo interesse, tempo e muito menos desempenho profissional satisfatório disponível pra procurar por eles!

E Senhor Humberto responde com a firmeza sem fim que lhe é de costume;

- Pois eu tenho boas novas ao senhor, pois sou um profissional e estou a  disposição deste distrito policial a quarenta e cinco anos. O senhor pode contar comigo.

E o delegado Ivanildo bate nas pernas e revira os olhos com a pele vermelha bufando um palavrão, levando as mãos ao rosto ele impacientemente de olhos fechados pede ao seu secretário e escrivão que acompanhe o senhor Humberto até os recursos humanos e o carreguem imediatamente numa viatura até sua casa.

Senhor Humberto retruca inconformado
- Mas senhor Ivanildo...
-SEM MAIS MEU VELHO! RETIRE-SE POR FAVOR!

E senhor Humberto cabisbaixo retira-se silenciosamente da sala do delegado, na verdade, não tão silenciosamente assim, antes de sair ele virou-se para Ivanildo e curvou-se gentilmente dizendo;

-Obrigado.

E saiu caminhando sentido aos recursos humanos acompanhado de Rodrigo, um jovem estagiário de 19 anos que é tão calado e reto quanto uma palmeira qualquer que sabe digitar numa máquina e cumprir ordens.

Do jeito que eles gostam, do jeito que eles querem.

Senhor Humberto acerta as contas com o R.H e é acompanhado por Rodrigo calado até uma viatura que o aguardava na esquina da delegacia;

- Bom dia para o senhor detetive Humberto.
Foram as únicas palavras de Rodrigo que senhor Humberto respondeu com sua clássica firmeza curta e grossa

- Tristes palavras garoto, péssima escolha de palavras para um jovem tão calado. Vá trabalhar rapaz.

E entrou na viatura bufando um palavrão.

NA VIATURA

O policial Antônio Pereira da Cruz de 35 anos dirige enquanto tenta dar um sermão no velho Humberto

- Dessa vez você deixou o patrão puto mesmo. Não tinha mais como coroa, você pegou pesado por muito tempo, não tem mais ninguém que faça o que você fez meu velho, acabou já era! Agora é atirar antes de investigar!  Ninguém mais pensa nos infelizes que você condenou porque os cabeção já apagaram o nome deles do hall da fama. As coisas são assim meu velho! As coisas passam! Só fica quem interessa! Quem dá mais grana! Quem mata mais! De uns tempos pra cá você só estava na procura de desaparecidos e isto é coisa que nem pra mídia interessa mais!

E senhor Humberto como sempre tem uma resposta para não ficar por baixo

- Eu sei muito bem do que o mundo é feito rapaz. Eu sei muito bem do  combustível de gosto ferruginoso que ele gosta de engolir, não pense que sou um velho burro. Tenho meus motivos para insistir na minha posição no D.P, tenho meus juramentos a cumprir rapaz, eu jurei perante a lei e perante a nossa bandeira igualzinho você fez, jurei sacrificar minha vida e a de meus familiares por nossa pátria, e você estava fazendo o que? Mexendo a boca enquanto os outros cantavam o hino nacional de verdade?

O jovem policial então dá uma pigarreada desajeitada

- Não, não! É, errr... n-não foi o que eu quis dizer senhor Humberto, não duvido do seu juramento nem da sua seriedade perante a causa da lei mas, mas... o senhor me entendeu vai! O Tempo passou senhor Humberto! 

- Era mais fácil só dizer que também concorda com todo mundo que eu estou velho demais pra acompanhar o ritmo do departamento meu jovem, só isso. Agora por favor pare naquele bar brilhante logo ali que hoje eu não vou pra casa tão cedo. Boa vigília pra você cabo!

E senhor Humberto desce com sua mala cheia de papéis em frente ao “Bar e Casa Noturna Sonhos Distantes do Caribe.”

Uma casa noturna que na verdade é bem fuleira, fica no largo da batata em Pinheiros num bairro da grande São Paulo, colado com uma casa de artigos para Umbanda. Senhor Humberto sempre gostou do cheiro forte do incenso que vinha de lá.

Então ele tocou a campainha de uma pequena porta estreita junta do prédio da casa noturna e esperou.

Após esperar cinco minutos sem resposta ele chamou um dos seguranças da casa noturna que já o conheciam muito bem e lhe entregou sua mala cheia de papéis.

-Aqui está todo meu trabalho rapazes. Deem a ela quando ela puder descer.

E os seguranças então apenas balançaram a cabeça e deram tapinhas de ” condolências “ no ombro do velho Humberto.

O Velho detetive então desce para o terminal de ônibus e senta no pequeno barzinho que tem colado ao ponto, apenas pra pedir algumas cervejas e puxar assunto com o dono do bar que também já o conhecia muito bem. Ao menos achava que conhecia.

Aquele tipo de lugar cheirando a gordura, creolina e pinho sol sempre foi o braço aberto mais aconchegante que acolheu as mágoas de senhor Humberto, é ali que ele baba todo seu juramento e responsabilidades num decorrer de quarenta e cinco anos.

 É  lá que agora ele chora buscando um motivo pra não estar ali e poder ter se tornado um  mágico como ele queria quando criança, ele queria ter ido embora com o circo, ele queria ter dançado com os ciganos, Senhor Humberto queria ter usado brincos e pano na cabeça sem que ninguém risse dele, mas agora o dono do bar escuta todo o relato de quarenta e cinco anos de um mágico ilusionista frustrado que nunca tentou ser mágico de verdade e tornou-se policial.

Então o dono do bar interrompe um dos milhares de discursos frustrados que senhor Humberto choramingava e fez um pedido que pegou o velho de surpresa;

- Então falou Sr. Humberto! Anos e anos enchendo a cara no meu boteco e nunca me contou que aprendeu a fazer mágica quando era pequeno! Agora é obrigação do senhor! Vai! Me faz uma mágica!

Senhor  Humberto então fica vermelho e completamente sem jeito.

A muitos anos que ninguém deixava senhor Humberto envergonhado e muito menos sem uma resposta que o fizesse sair por cima dispensando as opiniões, pedidos ou perguntas das pessoas.
Então ele pergunta baixinho ao dono do bar

- Mas, mas agora!? Assim!? Já? Aqui?

E dois senhores que estavam sentados no canto do balcão mudam suas cadeiras de posição e cruzam suas pernas com muito bom humor aguardando o espetáculo do senhor Humberto

- É claro! Vai Humbertão! Faz aí que eu quero ver! A plateia tá pequena!

E senhor Humberto olha todo envergonhado para os dois senhores que fazem um jóinha com a mão acompanhado de um clássico sorrisinho bem amigável.

Humberto dá uma sacudida nas mangas, abaixa a cabeça, respira bem fundo três vezes e diz

- Tá bem, me passe um daqueles guardanapos e pegue um pra você

E tirou uma caneta do bolso e escreveu a palavra “Arco” dobrando depois o guardanapo bem pequenininho, o outro guardanapo ele pediu para que o dono do bar dobrasse ele mesmo sem que escrevesse nada e segurasse bem forte na mão.

Então senhor Humberto arrancou um fio de cabelo da própria cabeça e queimou junto ao seu guardanapo e pediu para que o dono do bar abrisse a mão e olhasse o que ele mesmo havia dobrado

- PUTA MERDA!

Exclamou o dono do bar estarrecido ao revelar aos dois senhores e a Humberto que no papel que antes estava em branco em sua mão agora estava escrito a palavra “Arco-íris” . E o que é mais incrível, acompanhado de um fio de cabelo literalmente grudado no guardanapo amassado.

Os dois senhores aplaudem animadíssimos pedindo mais uma mágica, o dono do bar não sabe nem o que fazer com o papel em sua mão de tanta emoção

- Senhor Humberto! Tá louco! O senhor é fera! Por que não aproveita que o senhor tá mais folgado agora para voltar a dedicar nessa parada toda de mágica, pode ser até que dê mais grana que a polícia!

Disse o dono do bar acompanhado de uma larga e escrachada risada.
Então senhor Humberto ajeita sua manga e responde um pouquinho mais sério agora

- “Folgado”? Meu caro amigo, fazem quinze anos que frequento seu bar, e mesmo parecendo muito ainda é menos que o tempo que exerci minha carreira, e esta é a primeira vez que venho a um boteco e não tenho a sensação de folga e sim a sensação de perda, uma perda de passados e presentes. Tão queimados quanto aquele fio de cabelo e aquele guardanapo naquela mágica velha de poucos espectadores.

Disse senhor Humberto levantando-se e pagando a conta, e com um profundo suspiro ele cumprimenta o dono do bar com muita firmeza nas duas mãos, olhando firme em seus olhos passando-lhe a sensação de que talvez aquela fosse a última vez que se encontravam.

- Lá se vai um bom mágico

Disse um dos senhores sentados no canto do balcão, enquanto calado, o dono do bar fitava com olhar distante Sr. Humberto se afastar cabisbaixo em direção a plataforma de ônibus.

Enquanto isso, na mídia...

Numa sala normal, num apartamento velho e comum de um bairro antigo de classe alta de São Paulo, uma criança zapeia canais na TV grandona da vovó;

Primeiro canal

- Sequestro relâmpago hoje em dia dona Maria? Não é nada de mais! NADA! Roubar seu dinheiro é um milagre! Hoje o negócio é sequestro e esquartejamento, eles colocam sua cabeça no micro ondas, vendem seus órgãos refogados na empada e oferecem pros seus amigos, pra sua família! Hoje em dia polícia dorme com a arma de serviço na mão, na minha época agente podia deixar a arma de serviço no serviço! Eu sei que você que é ladrão assiste meu programa! SUA MÃE TAMBÉM ASSISTE MEU PROGRAMA! E ELA CONFIA EM MIM MALANDRO! HA! Por essa você não esperava!
Eu não preciso de arma pra mostrar quem eu sou! Eu tenho a voz do povo! Essa é minha arma! A arma da verdade! É a arma que te põe na cadeia vagabundo! É a arma da justiça! Eu não tenho medo de sequestro! Eu não tenho medo de moleque! Vocês sabem aonde é a emissora! Vem me pegar! Vem me pegar!

Próximo canal

- e eu avisei a todos que me deram ouvidos ao longo desses anos! Agora agente come na mão da violência, somos escravos da nossa própria ignorância! Soltamos os cães do inferno e agora eles estão babando feito loucos pelas ruas lotadas, doidos para chupar nossos ossos! Eu não quero mais ficar com minha família trancados em casa! Eu quero ser um homem livre!

Próximo canal

- por que hoje eu falei com cristo, e ele me pediu pra levantar a cabeça, pra parar de reclamar, pra olhar pro lado e falar;
Eu posso, eu posso ter um carro como aquele.
Posso ter uma casa dessas.
Posso ter ...

Próximo canal

- Ha é!? E quem é que tá ligadão na Verinha agora?
- Haaa eu sei eu sei!
- Não! Eu! Eu sei eu sei!
- A Verinha tava debaixo do edredom com o Thiaguinho e o Brasil todo viu de pertinho!
- O quêêê!!??? Então é verdade Thico?
- Opa opa! Acalmem-se meus gladiadores bronzeados! Heróis do confinamento escarlate! Minhas fontes secretas diz...

Próximo canal

- Eu tinha muitas mulheres, nunca tive muito dinheiro mas sempre tive muitas mulheres lindas, nunca tive nada de muito valor cara, só mulherada , muitas mesmo, e hoje eu to aqui nessa merda de emprego que não me dá tempo nem de sentir o cheiro de uma mulher!
Trabalho até de sábado!
Chega domingo não tenho pique nem pra lavar meu...

Próximo canal

- ... volução no mercado! Isso é que eu queria ver! Não quero depender disso pra comer! Por que você tem que aprovar pra eu comer? Por que você é que sabe o que pode jogar na minha comida? Na cabeça do meu filho? O mundo te estrangula pela tela do computador, te assusta pela televisão, te rasga pelos jornais, te matam de boca em boca, de povo em povo eles te matam e te congelam quando você não interessa mais, quando qualquer história não interessa mais  basta rasga-la ao meio e mandar os macacos esquecerem o que viram que todos eles esquecem sem questionar pois são treinados para perder! Só isso já justifica tanto sofrimento!

Então eu não mudei de canal e chamei a minha vó

- Ô Vovó, Vó, Vóvóóóó!!!!

- Oieee to ouvindooo!

- Vovó! Quem é esse moço de amarelo que tá falando na TV?

Minha avó então colocou seus óculos e veio pra perto do sofá para enxergar e ouvir melhor

- Hummm, esse moço é filho de alguém muito antigo, ele foi famoso uma época e agora parece que está pedindo ajuda em alguns programas para voltar pra TV, mas ainda assim acho que lembro de alguma outra coisa sobre ele bem lá atrás...

- Pois eu olho daqui e ele tá brilhando de um jeito todo esquisito pra mim, é estranho a senhora não lembrar o nome de alguém de imediato né vovó!?

- Pois é meu docinho, hoje tive um dia estranho no banco, sabe aquela história sobre seu avô ter entrado lá e retirado tudo do cofre?

- Como vou esquecer 15 horas de gritos histéricos seus repetindo essa mesma coisa vovó?

- Não foram 15 horas, bom, mas enfim, seu avô não esteve lá! Foi um sonho plantado na cabeça dos funcionários, alguém levou nossos pertences e eles não souberam me dizer quem foi. Ao menos Legião não soube e se fez de informante desinformado daquele sem vergonha que nem apareceu para me dar satisfação! Alguém grande tá por trás disso minha querida, e vovó Ilusão vai descobrir e vai dar um jeitinho nisso, agora coma seus bolinhos meu docinho, vovó vai preparar seu suquinho bem fresquinho.

E dona Dhalia vai preparar o suquinho de sua amada netinha como sempre fez ao longo destes 875 anos.
Mais laranja do que água e bastante açúcar pra sobrar no fundo.


Enquanto isso, na Tenda de Estrelas...

Existe um vilarejo chamado “Condomínimo das Fadas e das Peras”, fica no reinado dos bosques do plano das “Tendas de Estrelas” e é conhecido por ser uma região extremamente bela e também cheia de ladrões e negociantes minúsculos de asas, Fadas de todas as cores e sexos vivem nesta região e elas são especializadas em confiscar todos os pertences de quem quer que passe por lá, além de seduzir os que possuem poderes interessantes para que negociem porcentagem de seus poderes com a rainha das Fadas Ladras.
São seres que viajante nenhum quer encontrar em sua caminhada.

Porém apesar de todos os seus poderes e de sua enorme população a Rainha das Fadas Ladras ainda deve satisfações a um superior.
E hoje é um dia que ela precisa falar com ele urgente;

- Ÿorn! Eu preciso que você leve agora mesmo uma carta de apelo ao Plano das lendas!
Preciso que carregue esta carta dentro de si mesma e entregue-a a na mão do nosso senhor Saci, e peça perdão por eu não poder ter feito nada, diga que o fio de cabelo foi queimado ontem a noite e eu não tive tempo de evitar. Ele vai entender quando ler a carta.

E Ÿorn a fiel escudeira da Rainha das Fadas Ladras engole a carta e voa imediatamente sentido ao portal que leva ao plano das Lendas que fica cerca de apenas trinta quilômetros do Condomínimo das Fadas e das Pêras.

Ela passou voando bem alto hoje pois os Sapoláceos estão muito nervosos, eles são répteis desprezíveis que comem qualquer fada que vê pela frente quando estão de mau humor, são guardiões do portal do Arco-íris e hoje alguém infringiu uma lei muito séria.

  É mais um dia daqueles de muito agito e loucura nos bosques das Tendas.

Sapoláceos gritam feito gargarejos banguelas pela manhã, Gnomosapiens chupam cogumelos e pintam árvores para o concurso de beleza, fadas voam alto por suas vidas, ursos beberrões discutem os resultados do campeonato de hidromel (que diga-se de passagem foi uma vitória e tanto para os ursos do “Bosque Leste 01”, que perderam apenas um integrante afogado no processo), os anões hoje estão construindo armas novas em “segredo” (como sempre) por tanto estão em guerra com as árvores do “Bosque Sul 03, 04, 05 e 07”, são as únicas que eles ousam atacar e utilizar da madeira para seus artefatos, um gigante passa assoviando sentido as montanhas das montanhas, os Tamanduaves Bandeira voam balançando ao vento o brasão do Reinado dos Bosques, Bichos Preguiça tentam inventar leis no Parlameamento a céu aberto do Mangue Sagrado dos Urubus Rei enquanto as Mãeritacas gritam com todo mundo para colocar casaco e chinelo pra não pegar resfriado, ir lavar louça antes do papai chegar, arrumar a cama e escovar o dente, essas coisas de Mãeritaca, enfim, tudo isto faz parte da rotina dos bosques e seriam horas e horas relatando o que cada ser esta fazendo em cada ponto desta terra tão bela e misteriosa do Plano das Tendas Estreladas.
Porém o que se destaca é este furo dos Sapoláceos e esta fadinha que agora está atravessando o portal para o Plano das Lendas aonde a loucura e a magia não é muito diferente da do Plano das Tendas, pois lá além de todas as lendas de todos os povos de todos os cantos, também estão as lendas das lendas de todas as lendas de todos os planos. Ou seja, não é muito diferente dos outros planos, inclusive do plano da terra ou de outros planetas.

É um caos descontrolado como a maioria destes lugares.

NO PLANO DAS LENDAS

A fada Ÿorn atravessa o campo de gramas cantantes do plano das Lendas que canta uma canção assustada pois sua música nasce conforme o estado mental da pessoa que o atravessa.

No fim do campo encontra-se parado a beira de uma porteira simples, uma figura escura e encapuzada que desde todos os tempos ali esteve e é encarregada de perguntar aos visitantes o que os trazem até o Plano das Lendas, o encapuzado é um guardião como qualquer outro guardião de entradas de qualquer outro plano.

O negócio de Ÿorn é nos bosques com o Sr. Saci, uma das lendas mais conhecidas entre as lendas trapaceiras do Plano das Lendas, e nunca é fácil explicar o que se está fazendo por lá quando os negócios a se tratar são com o Saci, apesar de todos no Plano das Lendas já estarem cansados de saber com quem as Fadas ladras negociam, elas ainda assim usam de seu extinto negociador para omitir suas reais necessidades de se encontrar com ele.

- Em que lhe podemos ser útil Mensageira das Fadas Ladras das Tendas?
Pergunta o encapuzado de voz grossa

- O senhor já sabe que venho falar com o Sr. Saci, temos negócios a tratar sobre os impostos no Condomínimo.
Responde a Fada Ÿorn com uma certa rapidez atrapalhada clássica de uma resposta decorada.

O encapuzado nunca deixa de dar uma repreendida nas fadas mensageiras que ali aparecem, a rainha sempre manda uma fada diferente e ele sempre tem o prazer de alertá-las sobre suas medidas de segurança;

Então com sua voz bonita, educada e assustadora ele responde:

- O campo de gramas cantantes sempre canta uma canção assustada quando as Fadas das Tendas se aproximam de nossas entradas, nunca nos preocupamos muito com seres assustados e pequenos como vocês, estamos cheios de fadas aqui também e sabemos muito bem como lidar com seu povo.
 Mas faço questão de sempre alertar a todos os guardas sobre cada mensageira do seu plano que aqui chega para falar com o Saci.  Nós temos todos os olhos e todos os ouvidos, somos todas as árvores e todas as nuvens, somos muito mais que cada uma das estrelas que parecem não ter fim no seu plano de Tendas Estreladas.
Espero que acredite na fama de loucos organizados que temos entre os planos jovem fada.

Seja bem vinda e tenha ótimos poucos minutos em nossos domínios senhorita Ÿorn.

E o encapuzado que a todos conhece, abre a porteira simples de madeira que desde todos os tempos desmancha ao ranger da cerca emaranhada e enferrujada.

A fada Ÿorn que assim como todas as outras mensageiras e todos os outros seres de todos os outros planos está cansada de saber que o povo das Lendas adora reforçar esta fama de “loucos organizados” porque assim como em outros planos e planetas eles vivem num caos sem controle.  

Todo lugar que a Fada Ÿorn conhece tem seu moralismo descontrolado e medroso, eles sempre mostram suas garras de papel antes de cair do alto de pilhas altas que seus povos acumulam com seus papéis e suas organizações carregadas de soluções para seus vícios e ordem para suas loucuras.

- São tão desprezíveis quanto sapoláceos fedorentos.
E aquelas gramas cantantes não são de nada pois não sinto medo algum. Sinto é raiva dessa gente chata, e pressa de ir embora deste plano de personagens infantis metidos a besta.

Pensa a Fada Ÿorn enquanto atravessa a “Trilha Dourada” sentido a região central dos bosques, aonde é impossível de não encontrar pois é a única trilha dourada a se seguir.

Então do alto de alguma árvore uma voz alta recita, fala, reclama, alguma coisa e a pequena Ÿorn acelera seu voo desistindo de procurar de onde vinha a voz que exclamava e perguntava;

- A vida é uma tragédia quando a nossa canção nos mata de amor pela coisa errada, quando os olhos veem a carcaça morta e o coração despedaçado, a alma cai em dilúvio e seca como as mãos de um velho trabalhador que morreu de tanto amar seus erros. O amor falso é um trabalho que morreu de tanto matar e de tanto embebedar famílias, mas existem mundos que adoram se afogar nele. É lá que eles encontram seu progresso. E você gosta do amor falso dona fada? Gosta de progresso e de famílias bêbadas?

E Ÿorn continua a bater suas rapidamente sentido ao centro

- Não quero papo com você seu sei lá o que você é! Sai do meu caminho!
Gritava a fada enquanto voava com as mãos nos ouvidos

Então um forte estrondo derruba Ÿorn de seu percurso e ela desmaia caindo entre as folhas secas. Quando um homem enorme com uma notável corcunda sai de trás dos arbustos segurando um enorme cano de ferro;

- Eeeeta mariposa sem graça! Que raios você quer com isso Dona Matinta? Não dá pra nada essa coitada!

E Dona Matinta responde
- Deve ter uma carta importante dentro dela, precisamos abrir a barriga da fada! Vai parceiro! Faça isso!

O Corcunda então responde defensivo
- Vai? Vai o que? Vai aonde? Já derrubei ela com o cano de berro sem machucar igual você falou, e agora você quer que eu rasgue a barriga dela? Tá doida véia?

Então Matinta em tom impaciente ordena mais uma vez;

- Eu queria que você derrubasse ela inteira pra não danificar a carta lá dentro! Agora preciso da carta! Preciso que rasgue a barriga da fada e pegue a carta pra mim! Só isso! Estou farta de me sujar de sangue por hoje!

E o corcunda responde com uma risadinha irônica;
- Haaa tá mas é claro, mas que moleza, até parece!
Pois eu não vou rasgar nada não, nem tenho estômago pra isso! Num rasgo barriga de ninguém não!

E Matinta grita muito mais impaciente agora:

- Como você pode? Você queria mata-la de qualquer jeito! Eu que pedi pra derrubar no cano  de berro! Qual a diferença? Não brinque comigo e corte já a barriga dessa infeliz!

E o corcunda insiste:

- Pois se eu mato eu dou um tiro só e pronto, bem de longe que é pra não me sujar de sangue! Você tá cansada de saber isso! Não gosto de abrir nada na faca, nem peixe! Você é que é a especialista em abrir tudo na faca aqui! Você que vive fazendo sacrifícios, rituais! Por que não abre logo e para com essa frescura de que tá cansada? Somos parceiros Matinta! Eu não sou seu escravo não!

Então Matinta que já estava bem nervosa e apreensiva pega seu punhal mágico com as mãos trêmulas, os olhos vidrados e dentes serrados de raiva e enfia com tudo na barriga da pequena fada.
Então o corcunda dá uma forte gargalhada e diz para Matinta;

- Ha! Olha aí o que você fez! Disse pra ir com cuidado mas afundou a faca na bichinha! Deve ter rasgado a carta! Hahahahaha! Véia atrapalhada!

E dona Matinta retruca enquanto puxa de volta a faca com as mão cheias do sangue lilás que as fadas soltam;

- Você me deixou nervosa! Esse aqui é o punhal vivo! Ele finca fundo quando está na mão de alguém nervoso!  Agora vou ter que puxar o punhal com cuidado para abrir um rasgo mais raso! A culpa é sua! Que erro que cometi em confiar em você! Que erro! Que idiotice!

Antes de o corcunda começar a retrucar, a mesma voz que havia falado com Ÿorn antes de ela ser atingida pelo estrondo, voltou a soar bem alto da copa das árvores interrompendo os dois parceiros que se entreolharam surpresos;
Então a voz gritou:

- Ha sim! Agora sei quem são vocês! Vocês são os caçadores! São os caçadores de cartas engolidas! Desculpem-me mas vou ter que levar a fada comigo!

E aquele vulto preto absolutamente veloz desce do alto das árvores e volta na mesma velocidade carregando o corpo ensanguentado da fada Ÿorn junto com ele, desaparecendo sem deixar rastro algum, a não ser a direção para a qual sumiu dentre as árvores;

Os dois parceiros ficam em silêncio por alguns segundos e então começam a culpar um ao outro como costumam fazer;

- Tá vendo? A culpa é sua! Me distraiu e aquele passarinho preto veio e roubou a fada! Seu imprestável! Agora é mais um tempão pra achar essa carta!
Gritava Matinta inconformada

- Ha claro! Claro! A culpa é sempre minha! Eu nem sei que carta é essa direito, você nunca me abre nada! Ainda faço muito por você sem saber o que estou fazendo! Você não faz ideia do que era aquela coisa preta? Como pode ser tão rápido? Que negócio é esse de caçadores de cartas engolidas?
Perguntou o corcunda sentindo-se injustiçado

- Que caçadores de nada meu querido! Era um louco falando loucuras, devia ser um pássaro ladrão muito rápido, nada mais me surpreende nessas terras! Agente não estava atrás de coisa pequena, era uma carta para o Saci! Uma carta que fala sobre a abertura sem autorização de um portal que se não me engano vai pra terra. Preciso saber mais sobre isso meu bem. Preciso saber muito mais! Pessoas poderosas devem estar atrás dessas informações agora! É o começo para a nova revolução!
Disse empolgada Matinta enquanto limpava as mãos cheias de sangue em sua túnica.

Então o corcunda responde com certa ironia
- Então finalmente você me conta realmente do que estamos atrás, me conta justamente depois que perdemos o que procurávamos!

Matinta responde
- Pois é, daria na mesma! Perderíamos para aquela coisa de qualquer jeito! Agora temos que continuar andando sentido leste!

Mas o corcunda insiste e pergunta;
- Talvez se você tivesse me falado eu teria tomado outras medidas e já estaríamos com a carta na mão! E porque vamos pra leste? Dá pra me falar isso ou é segredo até alguma outra coisa dar errado também?

Então Matinta responde calma e confiante enquanto mexe em sua bolsinha;

- Por que é pra leste que aquela coisa foi carregando a fada, eu sou a Matinta meu querido, conheço as florestas melhor do que conheço um rolo de fumo.

E Matinta pega seu cachimbo inseparável para dar algumas longas pitadas em silêncio, então ela respira fundo, fecha os olhos, conta até três e arremessa o punhal vivo numa ave gorda que passava pulando entre os arbustos.

- Por que fez isso coroa? Tá com fome?
Perguntou espantado o corcunda com a reação tão repentina de Matinta

- Não meu amigo, fiz isso porque agora tenho que forjar um sacrifício antes de sairmos atrás da carta. Se os guardiões do punhal vivo souberem que usei o punhal sem sacrificar a presa do punhal da devida forma eles irão descontar a raiva deles em minha alma.

E o corcunda pergunta
- Mas então não teria que sacrificar a fada? Não foi ela que o punhal matou?

E Matinta que já seguia se vira para o corcunda e diz;

-E quem disse que ela morreu?
Vou colocar a ave no meio de alguns desenhos no chão e já volto meu querido.
Fique de olho nas copas das árvores pra mim.

E Matinta caminha para dentro da mata fechada com as mãos sujas de sangue de ave gorda.


FIM DA PARTE 2